ESPORTES

Pais que trabalhavam no lixão lutam por vida digna para os filhos

As memórias de medo e de recomeço misturam-se nas palavras do baiano Marcos Cabral de Oliveira, de 50 anos de idade. Fome, secura e abandono na sertaneja Caetité, na Bahia (BA), o caminho com a “mãe de criação” para Brasília (DF) no início dos anos 1980, a esperança de “algum dia melhor”. O menino virou adolescente e foi trabalhar no lixão da Vila Estrutural, na capital federal.

“Aquilo não pode mais. Eu quis que meus dois filhos brincassem e estudassem. Hoje tem até lei para isso”.

A lei que Marcos, analfabeto, não conhece pelo nome, mas sabe o que significa, responde pela sigla de ECA, o Estatuto da Criança e do Adolescente, e vigora desde 13 de julho de 1990. A legislação é ampla na garantia dos direitos da infância foi solidificada e viabilizada sob os ecos da Constituição cidadã de 1988. O desafio brasileiro nessas mais de três décadas foi tentar tirar a legislação do papel e virar ação prática.

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Brasília (DF), 10/07/2025 – Marcelo Cabral de Oliveira, que trabalha no Instituto Viver na Vila Santa Luzia, fala sobre o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Quando o filho de Marcos, Marcelo, nasceu, há 27 anos, o estatuto já existia. “Eu sei que estudar e brincar é muito melhor do que o que eu passei. Trabalhar no lixão me causou ferimentos na mão com a sucata. Tenho uma dor nas costas que não passa desde que eu vivia por lá”.  Viver por lá significava também passar madrugadas e frio cercado de lixo e carregando materiais que eram maiores do que ele.

“Quem trabalhou no lixão não quer isso para quem ama”, afirma Marcos.

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Os dois filhos foram estudar, atuaram como aprendizes em empresas e puderam sonhar até com a faculdade. Marcelo, que hoje trabalha como lojista, chegou a ingressar no curso superior de análise de sistemas.

Ele também é voluntário em um instituto chamado Viver, iniciativa criada pela igreja Presbiteriana e hoje é uma ONG, que recebe crianças em vulnerabilidade na região. Marcelo é grato por um dia ter sido aluno do instituto enquanto o pai precisava ir para o lixão. “Aqui eu brincava e aprendi a jogar bola”. Outros colegas “perderam-se na vida”.

A assistente social dessa entidade, Maxilene Duarte, explica que o objetivo é receber crianças em contraturno escolar e oferecer refeições e apoio pedagógico. “O lugar foi criado para evitar que as crianças fossem junto com a família para o lixão”.

Brasília (DF), 10/07/2025 – Fabiane e Maxilene, que trabalham no Instituto Viver na Vila Santa Luzia, falam sobre o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

A psicóloga Fabiane Ferreira entende que a entidade promove fortalecimento de vínculos e que elas reconheçam que devem estar na escola e não no trabalho.

“Como psicóloga, atendemos não só as crianças, mas os pais também que vão compreendendo o melhor lugar para a criança estar”. 

Crianças como protagonistas

A pesquisadora Ana Potyara, diretora da entidade civil Andi Comunicação e Direitos, explica que o ECA contou com a pressão popular para colocar criança e adolescente como sujeito de direitos na Constituição Federal. “As crianças devem ser tratadas como protagonistas e cuidadas”.

Promover esse debate sobre um estatuto para criança foi uma ação de pressão realizada por entidades como a própria Andi no fim dos anos 1980. A ideia gerou repercussão com o apoio dos fundadores da ONG, os jornalistas Âmbar de Barros e Gilberto Dimenstein (que faleceu em 2020). O Congresso Nacional abraçou a iniciativa da sociedade.

“Os jornalistas viam na comunicação um campo de pressão do Estado em relação ao Congresso, em relação ao Executivo, para a construção desse estatuto, que dá dignidade, direitos e proteção às crianças e adolescentes”, afirmou.

Ana Potyara contextualiza que o ECA rompeu com a ideia de que a criança era apenas mais um indivíduo na sociedade e que não poderiam ser vistas como “mini-adultos”. “O Estatuto da Criança e do Adolescente regulamentou artigo da Constituição sobre os direitos da infância. “Hoje a gente tem uma legislação muito maior, que vem se adaptando às novas realidades e às novas demandas”.

Ela explica que a mídia também passa a fiscalizar a garantia dos direitos da infância. “A sociedade passa a não admitir que a criança passe por situação de humilhação e degradante. O trabalho infantil é uma das violências’.

Campanhas e políticas públicas

Brasília (DF), 10/07/2025 – Fachada do Instituto Viver na Vila Santa Luzia. ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil – Valter Campanato/Agência Brasil

Pensa assim também o diretor de proteção da criança e do adolescente do governo, Fábio Meirelles. Ele avalia que o país ainda tem o desafio de proteger crianças e adolescentes em maior vulnerabilidade para reafirmar o princípio da proteção integral.

“As crianças não podem ser vítimas de violações e, nesses 35 anos, há uma crescente maturidade da sociedade para fazer valer os direitos”.

Entre os exemplos dessa evolução, ele aponta o Disque 100 que é um canal de denúncias consolidado para que qualquer pessoa possa apresentar, de forma anônima, violações cometidas contra crianças. “Só em 2024, por exemplo, mais de 1,2 mil crianças foram resgatadas de trabalho infantil”.

O número dessa transformação pode ser considerado ínfimo ainda levando em conta o levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgado no ano passado, via Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC). Haveria no país 1,6 milhão de crianças e adolescentes, de 5 a 17 anos de idade, em trabalho infantil e esse seria o menor número desde o início da série histórica, em 2016.

Pior ainda, 586 mil crianças e adolescentes continuam vítimas de trabalho infantil em suas formas mais degradantes.

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Meirelles aponta que o governo e o Ministério Público têm feito campanhas em busca da erradicação desse tipo de trabalho. Para ele, o enfrentamento à miséria e à fome com programas assistenciais em diferentes campos da cidadania, da saúde e da educação buscam reduzir os cenários de extrema desigualdade que causam o número elevado de crianças trabalhando ao invés de fazendo atividades infantis.

“O cenário é bastante desafiador”, avalia. Inclusive, durante toda a próxima semana, deste domingo até o dia 17, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania realiza o seminário “35 anos do ECA: Justiça Social e Ambiental”, entre os dias 13 e 17 de julho, em Brasília.

“O evento inaugura a agenda oficial de entregas e anúncios do governo federal voltados à proteção e promoção dos direitos de crianças e adolescentes no país”, apontou o governo.

Segundo o ministério, o encontro articula os temas da justiça social e ambiental como eixos centrais para o presente e o futuro das políticas públicas.

Para a secretária nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e presidente do Conanda, Pilar Lacerda, a celebração dos 35 anos do ECA representa um marco histórico de conquistas na consolidação dos direitos humanos no Brasil.

“O Estatuto é fruto de intensa mobilização da sociedade civil, de movimentos sociais e da luta de crianças, adolescentes e militantes por justiça social”.

“Atacar a pobreza”

Fábio Meirelles destaca que o sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes, com profissionais como conselheiros tutelares, representantes do Ministério Público, do Judiciário e profissionais da assistência compõe o sistema de garantia de direitos criado no âmbito do ECA.

“Precisamos fazer esse esforço de reestruturar as políticas, da centralidade da criança e do adolescente, de atacar a pobreza multidimensional e fortalecer o sistema de garantia de direitos da criança. As crianças pretas e meninas são ainda mais vulneráveis”, pondera.

A pesquisadora Ana Potyara, da Andi, reforça que todos os dias os brasileiros veem crianças em situação de vulnerabilidade, inclusive no trabalho.

“Temos ainda uma quantidade enorme de situações de trabalho infantil na sociedade brasileira e que muitas vezes é tolerado”, lamenta.

Um dos esforços que a sociedade e as políticas públicas precisam enfrentar é a falsa ideia de que o trabalho dignificaria a experiência infantil para um futuro. “É a educação que dá um futuro”.

Outra ponderação que a pesquisadora realiza é que, além das crianças em situação de pobreza, a sociedade do consumo tem colocado crianças na frente de câmeras para atuarem na internet.

“Esse é o caso de trabalho Infantil artístico.Tira delas a oportunidade de fazer o que é atividade de criança”, cita. Além do impacto direto e imediato na infância, a pesquisadora da Andi aponta que esse tipo de problema causa reflexo econômico no futuro. Assim ocorreu com a catadora Ana Cristina Rodrigues, de 39 anos, também analfabeta, mãe de quatro filhos

Brasília (DF), 10/07/2025 – Ana Cristina Rodrigues, moradora da Vila Santa Luzia, fala sobre o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil – Valter Campanato/Agência Brasil

Ela é residente em um barraco na comunidade de Santa Luzia, localidade desassistida em políticas públicas e onde as ruas não são asfaltadas. Ela trabalhou no lixão durante a adolescência e sente falta do espaço.

Ana celebra que foi eleita “miss catadora” no ano de 2018 e escolhida pelos vizinhos para ser líder comunitária. Entre as atividades dela, está a de uma campanha permanente para doação, incluindo cestas básicas e prestação de serviços, como busca de voluntários para ensinar idiomas para as crianças.

Ana quer deixar para trás o passado, de quando foi presa. Um dos filhos está também no presídio. “Fizemos coisas erradas”. Aos filhos, ela quer um destino diferente do dela. Os outros três, segundo ela, estão estudando. “Eles têm direito como todo mundo, né”.